terça-feira, 20 de novembro de 2007

os milagres acontecem

Os milagres acontecem
a horas incertas
e eu nunca estou em casa
quando o carteiro passa

Hoje abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal
olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo

domingo, 11 de novembro de 2007




sobre o branco nada tem a dizer.



Escapa-se-lhe por entrelinhas, rasgando-o em azuis. Desses azuis faz caminho, direitinha para casa. Chave à porta, duas voltas no trinco – ninguém antes, ninguém depois. Tombam-se-lhe então, as esquinas em 30 graus, das cores fortes da cozinha mexicana. A panela de pressão que não apita sozinha, o lar que não o faz só de um. Toca a cozinhar, toca a lançar cheiros pelo ar, quem sabe se tão rápido que vá a tempo de os cheirar mesmo antes da chave à porta, quem sabe se tão rápido que vá a tempo do trinco não fechado.

Neste momento, aqui tão perto, corre pela última vez o momento que agora oiço. Pela última vez, a derradeira possibilidade de fugir para o lugar recôndito da minha falsa memória, minha. Não minha, certamente, ou talvez... desde sempre. Deixo-a fugir. Dou-lhe a liberdade que é fado: a de um dia permanecer apenas na minha memória. Não posso – é uma impossibilidade – retê-la neste mundo mágico de a poder revisitar fisicamente sempre que queira. Ao Tempo a sua primazia. Experimento agora essa fatalidade.
Mas que não, nem por sombras, posso desdenhar o privilégio de conhecer a entrada para o engano do Tempo. (Enganamos o Tempo – repetimo-lo, recriamo-lo e dele fugimos para nele nos refugiarmos.) É dentro de ti, oh Tempo ludibriado, que pela nossa emoção te enganamos e te revivemos onde nos fazes felizes. És nosso. Não obstante, concedemos-te a caprichosa ilusão da fuga. Por isso foge e leva contigo os montes e os arrepios que não mais poderei visitar. Não me esgoto, não me esgotarei na azáfama de te contrariar. Por isso leva contigo o cheiro a feno – não correrei atrás do último dia. Vence, porque te deixo vencer. Insisto, persisto, que não terei medo da tua inexorável passagem. Serás o que eu quiser. No palco e do palco serás quando eu quiser.
Quando nós quisermos.
Por detrás dos montes, lá nos encontraremos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007















arde poema
ardam palavras
arde cansaço de si mesmo
e fecha a mão.
guarda meticulosamente cada gota que te separa.
vai contar cada gota de distância
e bebê-la uma a uma...

a menina que pensava que podia voar com os ciclones
achava também que a saudade se bebia.
vai bebê-la gota a gota
até que se extinga um mar dela.

que se apague o incêndio
que se seque o caminho até à ilha
e se mate como quem beija.

terça-feira, 6 de novembro de 2007













perguntou um dia a negrinha
porque é que eles têm medo de mim?
os seus grandes olhos redondos
apenas se detinham na pergunta.
nada para além do pequeno incómodo.

são meus os teus olhos
tua ingenuidade o início da minha solidão


no dia seguinte encontrei-a sentada no chão
em desenhos ao acaso na ponta de gravetos.
levantava poeira
e os seus pés aconchegavam-se na terra seca.
sentindo a minha presença, sorriu.
ofereceu-me uma flor.

mais um dia passou
e outro
e outro
e a negrinha lá estava
com poeira, gravetos e flores.

muitos dias depois,
da negrinha eu só via dois traços de lágrimas
desenhados no rosto empoeirado.
à sua volta
um jardim desconexo de flores de terra seca.
não me viu.

passaram-se muitos mais dias
sem que em nenhum deles
eu tivesse a coragem de a procurar.

um certo dia,
lembrando-me do que uma vez me perguntara,
procurei-a.
encontrei então a resposta:
ninguém tem medo de flores.